Como o Fate mudou a forma que olho o RPG

Como um livreto de 40 páginas pode ter feito tanto? Fate Accelerated Edition mudou os fundamentos do meu entendimento sobre o que eu quero de um RPG e alterou drasticamente a minha forma de jogar e é sobre isso que eu vou refletir neste artigo.

Esse tal de Fate

Em meados de 2013 ou 2014, eu não jogava RPG há muito tempo, por vários motivos. Quando eu recebi a notícia de que a Evil Hat havia lançado uma nova edição do Fate, decidi dar uma olhada. Eu já conhecia Fate pela tradução extra-oficial da segunda edição e havia conduzido uma curta campanha adaptando os Mitos Arturianos, que foi muito bem-sucedida. Ver, portanto, que o sistema ganhou uma nova edição me trouxe um interesse repentino. Além disso, aquele visual pulp visto em “Espírito do Século” sempre me atraiu e estava presente na identidade visual dos anúncios do financiamento coletivo do Fate Core.

Com o PDF do Fate Core em mãos, eu fiquei ainda mais empolgado. Ali eu enxerguei que havia uma nova forma de jogar RPG e isso me deu um ar renovado no meu passatempo favorito. Olhando para trás, eu percebo hoje que Fate negligencia algumas vacas sagradas do RPG que eu sempre reneguei. Minha formação como Árbitro e Jogador de RPG se iniciou no maravilhoso RPG “Aventuras Fantásticas” (que vai ganhar um artigo próprio por aqui em breve) e isso influenciou como eu enxergo as regras que tratavam os pormenores de equipamentos, munição, carga tidas como sacramentadas e obrigatórias em qualquer RPG, bem como o papel dos NPCs. Com o Fate, aquele estilo estava diante de mim de novo: um jogo com mecânicas mais soltas, descompromissado com a simulação e muito mais focado nas cenas ou na cadeia de eventos de uma aventura e no protagonismo dos Personagens Jogadores. Aquilo casou perfeitamente com o que sempre prezei em minhas partidas.

Melhor ainda foi quando a Evil Hat lançou os SRDs sob a Creative Commons. Eu sempre gosto de levar material em português para minha mesa e eu decidi traduzir as regras do Fate Core por conta própria. Como você já deve ter imaginado, aquilo era um trabalhão para uma pessoa só fazer em seu tempo livre. Então eu recorri à solução óbvia ao problema: trabalhar em cima do Fate Accelerated Edition (FAE). Bem menor que o Fate Core, o documento puro do FAE cabia em menos de 20 páginas A4 e isso era algo que eu poderia traduzir. Bom o bastante para levar para a minha primeira mesa de jogo depois de quase dez anos sem jogar RPG.

Menos, mas melhores regras

À medida que eu fui traduzindo o SRD do Fate Accelerated, tive algumas impressões: a primeira era de que não se tratava de uma mera prévia ou resumo do Fate Core, mas um jogo completo! A segunda impressão foi a lembrança constante do meu saudoso e já mencionado RPG “Aventuras Fantásticas”.

Ao terminar a tradução do SRD, cheguei à conclusão de que o FAE me serviria muito mais do que o Fate Core em si. Então, fiz uma diagramação minimalista e publiquei o jogo aqui no blog (na época chamando o jogo de “Nereus!”). Imprimi o documento, algumas fichas de personagem e combinei de jogar RPG com alguns amigos, coisa que eu não fazia há muito tempo.

Aliás, cabe aqui um parêntese: a última vez que eu joguei com eles, estávamos na pegada do calamitoso D&D 3E e levamos 4 horas só para criar os personagens e jogamos apenas meia hora antes de dar a sessão por encerrada devido ao esgotamento. Aquela trauma se repetiu algumas vezes em outros grupos e foi essa experiência ruim que me afastou do hobby. O lance é que quando chamei-os para jogar FAE, tive que desconstruir a imagem de que levaria para a mesa uma abominação como o D&D 3E novamente e convencê-los de que dessa vez as coisas seriam diferentes.

O fato é que FAE te entrega, sim, um jogo após meros 15 minutos de preparação. Apesar da estranheza inicial de lidar com um sistema que não está simulando a física das coisas, mas sim abstraindo a ficção, as vias de fato da partida aconteceram muito rápido e aquele jogo foi uma libertação das coisas que emperravam a gente de jogar e a apresentação de uma forma ligeiramente diferente de se jogar RPG. Isso fez com que a gente elaborasse cenas, ações e reações diferentes e de fato experimentasse uma nova versão de um antigo passatempo, trazendo de volta o interesse em sentar ao redor de uma mesa, jogar alguns dados e imaginar coisas malucas.

Isso fez com que utilizássemos o FAE para outras coisas longe da nossa zona de conforto, mas que sempre queríamos jogar de uma forma ou de outra: faroeste, cyberpunk sobrenatural, ficção científica psicodélica e aventuras de romance gótico e outras pirações. Tudo era traduzido de diferentes formas, rearranjando ou abstraindo as coisas, até mesmo as mais subjetivas ou espinhosas, com a mecânica de Aspectos. Tudo isso com um livreto de 40 páginas. Olhando hoje, não acho isso surpreendente: Fate possui menos, mas melhores regras. Ele permite que as coisas que importam para um grupo tenham a granularidade que merecem, deixando em aberto as demais coisas. Você quer pirar nas especificações técnicas de Mechas? Vá em frente e crie seus “specs” na forma de Aspectos. O mesmo vale para coisas menos claras como sentimentos, relacionamentos e motivações. Cada “verdade” importante o bastante pode se tornar um ou mais Aspectos em cena.

Conclusão

Hoje eu vejo com muito carinho o que o FAE me proporcionou. Ao longo dos anos, adotamos um certo padrão sobre como

as coisas deveriam ser representadas, afinal o Fate permite que você represente um elemento do cenário de diversas formas possíveis e todas elas provavelmente funcionarão. Hoje, essas decisões, regulamentos ou “jurisprudência” estão materializadas no Manual de Regras do Destinos Imaginários, disponível gratuitamente por aqui.

Carrego com muito carinho esse manual, pois é com ele que eu ensino as pessoas a jogarem RPG e, por ser um jogo tão diferente, coloca aquele veterano de D&D e o jogador iniciante no mesmo momento dentro do hobby: o de aprender um jeito novo de contar histórias… e eu nunca mais pretendo olhar para trás.

Créditos: Imagens obtidas no site da Evil Hat e Fate SRD.